Uma das implicações motivadas pela escassez hídrica consiste em identificar possíveis vilões que estariam comprometendo a disponibilidade desse recurso natural insubstituível para seus múltiplos usuários. Nesse contexto, a agricultura, reconhecida como o maior usuário de água doce do planeta, pode estar sendo injustamente qualificada por uma opinião pública mal informada.
Discordamos de Arlindo Falco Junior, em seu artigo publicado nesta Folha ("Nova praga", 17/12/2014), identificando o consumo de água pela agricultura como uma "nova praga". Na verdade, a deficiência hídrica revelada em seu artigo para a produção de cana-de-açúcar não foi retirada do solo, ou do lençol freático, ou dos rios, pelo fato dessa cultura não ser extensivamente irrigada.
Assim, a deficiência hídrica provocou um reconhecido decréscimo na produtividade, que acabou reduzindo o período operacional das usinas. A limitada extensão do sistema radicular dessa cultura impede uma significativa absorção de água abaixo de, provavelmente, 50 cm de profundidade no solo. Por outro lado, é considerada uma das culturas mais eficientes na conservação do solo, praticamente, eliminando o escoamento superficial.
Não se deve ignorar que, ao eliminarmos as culturas agrícolas, a vegetação natural deverá prevalecer, consumindo quantidades semelhantes de água, que serão integradas ao ciclo hidrológico, além de proteger o solo e favorecer a infiltração.
Um esclarecimento que se faz necessário seria identificar o que realmente se caracteriza como "consumo" de água pelas culturas agrícolas. Assim, torna-se imprescindível considerar que apenas a quantidade vaporizada da água aplicada, através dos processos de evaporação e, principalmente, transpiração, pode ser contabilizada como "uso consuntivo", ou seja, efetivamente subtraída da quantidade precipitada.
Por outro lado, o processo de transpiração vegetal é uma condição necessária para permitir a entrada de gás carbônico no ambiente celular, fornecendo um ingrediente indispensável ao processo fotossintético que assegura a produção de alimentos, fibras e bioenergia renovável às populações.
As populações urbanas não devem ignorar que toda água que chega às suas torneiras são captadas em áreas rurais e, portanto, deveriam valorizar as iniciativas dos proprietários rurais em promover a ampliação da quantidade e da qualidade dos recursos hídricos nas áreas de captação.
O Programa Produtor de Água instituído pela Agência Nacional de Águas do Ministério do Meio Ambiente congrega uma tendência mundial de pagamento por serviços ambientais na gestão de recursos hídricos, que transcendem os limites da propriedade rural e beneficiam toda a bacia hidrográfica e a população dela dependente.
A sociedade deve se conscientizar que, apesar de não merecer prioridade em situações de escassez emergencial, a interrupção do fornecimento de água às culturas pode determinar, também, a escassez de alimentos, principalmente as hortaliças e frutas tradicionalmente irrigadas.
Este cenário pode ainda ser agravado pelo desestímulo dos agricultores, que sequer são indenizados pela interrupção forçada de suas atividades produtivas, ignorando suas responsabilidades frente aos compromissos financeiros assumidos para custear o processo produtivo, além de comprometer as condições necessárias para assegurar a manutenção da qualidade de vida no meio rural.
Portanto, espera-se que em cenários de escassez hídrica, seja assimilada a lição de racionalizar o consumo em todas as suas formas, reduzindo o desperdício irresponsável que atinge, em média, cerca de 40% do volume proveniente das estações de tratamento.
Caso este volume tivesse sido reduzido pela metade, certamente não estaríamos atravessando os cenários de insegurança no abastecimento, que tem aterrorizado as populações em inúmeras regiões do país.
Por Edmar José Scaloppi – Engenheiro agrônomo e professor titular da Unesp
Fonte: Folha de S. Paulo