Elas estão na linha de frente, ajudando a recuperar a fama e os negócios da região que inspirou Jorge Amado e que foi devastada pela praga da vassoura-de-bruxa há mais de 30 anos
Conta-se em Ilhéus que, no auge de seu poder no Sul da Bahia, os grandes fazendeiros de cacau deixavam suas mulheres e filhas na Capela de São Sebastião, hoje catedral da cidade, iam para o Bar Vesúvio, e de lá tomavam um caminho até o Bataclã. Há quem diga que os coronéis chegavam a pagar os padres para esticarem a missa de domingo e, assim, prolongarem seus prazeres no bar comandado por Nacib e no misto de bordéu e casa de jogo de Maria Machadão, os dois últimos imortalizados no romance “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado. Parte da festa acabou quando, em 1949, Maria Machadão fechou sua casa e voltou para o Rio de Janeiro – ela era carioca -, onde não deixou rastro. Mas foi só nos anos 1980, quando a praga da vassoura-de-bruxa devastou as plantações de cacau, que a festa realmente teve seu fim. Seguiram-se propriedades devastadas, fazendeiros falidos e histórias de suicídio diante de dívidas. Felizmente, há mais de uma década, uma turma de produtores decidiu insistir e recuperar as plantações. Hoje, dezenas de fazendas nos arredores de Ilhéus produzem cacau e chocolate de qualidade – e muitas delas têm mulheres no comando.
Entre o papel de coadjuvante na missa de domingo e o comando da produção de cacau e de chocolate, há muita história. Muitas dessas mulheres descendem de produtores de cacau e, por diferentes motivos, decidiram construir um novo projeto de vida a partir do passado de suas famílias. Algumas apostaram na recuperação da plantação e da fazenda: já produzindo cacau, passaram a produzir também o chocolate, em um movimento conhecido como tree to bar (da árvore para a barra). Outras compram cacau de produtores reconhecidos e comandam marcas de chocolate. O que importa é que conquistaram terreno em um mundo outrora dominado pelos homens.
– Ser mulher é particular no mundo do chocolate, mas está começando a ser presente. Somos muitas, trocamos informações e nos fortalecemos. Somos comprometidas, temos sensibilidades, força de realização. A gente se renova na direção do bem. É uma união mesmo. O que queremos é levar esse alimento, cujo nome científico theobroma cacao significa alimento dos deuses, e ele é divino mesmo, para o mundo – explica Patricia Viana, que está a frente da fazenda de sua família e também da Modaka Cacau de Origem.
Celina conversou com Patrícia e com outras três produtoras do Sul da Bahia – Juliana Aquino, da Baianí; Marcela Monteiro de Carvalho, da Cacau do Céu; e Luana Lessa, da Chor Chocolates de Origem – durante o Chocolat Festival, evento que tem edições anuais em Ilhéus, Belém e São Paulo.
Patrícia Viana tinha 2 anos quando seus pais decidiram assumir a fazenda que tinha sido de seu avô. Como muitas mulheres na região, foi estudar em Salvador e lá criou uma carreira: era empresária gráfica. Um dia entendeu que queria deixar a dinâmica do “dorme, acorda e paga”, foi para a Índia, meditou e entendeu que queria viver “com sentir”.
– Vi que isso estava na fazenda, na plantação orgânica que virou agrofloresta. Hoje, o cacau é o meu ponto de equilíbrio. É bonito ver que a região está viva e que estamos construindo uma nova história – diz Patricia, que chegou como gestora, estudou e, aos poucos, migrou para a produção. – Cheguei de forma humilde e fui aprendendo. Agora, meu pai está me passando a gestão administrativa e financeira da fazenda. Gerir uma fazenda é diferente de frequentá-la. O campo é masculino. A gente tem que saber chegar, mas eu sei questionar.
Antes de assumir a fazenda, Patrícia se concentrou no cacau e seus derivados. Fundou a Modaka Cacau de Origem, sua marca de chocolates, que compra cacau da fazenda da família. De lá também saem amêndoas de cacau caramelizadas, nibs, licquor, geleia, manteiga e cacau em pó – tudo feito artesanalmente.
– Meu sonho é reestruturar a fazenda para receber pessoas, montar a trilha do cacau para quem quiser vir conhecer a nossa história e cultura. Fazer turismo de experiência na região – revela Patrícia.
Quem também começou com o chocolate foi Juliana Aquino, da Baianí. Seu bisavô fundou Itabuna, cidade a 32 km de Ilhéus, e o pai comprou a fazenda que hoje é de Juliana e do marido, Tuta, em 1973.
– Fui aconselhada a fazer o chocolate para testar a qualidade da amêndoa. Assim, me apaixonei pelo processo e, em dois anos, lançamos a Baianí. Mas, antes mesmo do chocolate, o que me chamou atenção foi a escola que meu pai fundou em 1987. Fiquei muito tocada, quis reconstruir. A partir daí, entendi que precisava agregar valor ao cacau para poder recuperar a fazenda e a escola. Assim, nasceu a marca.
Hoje, a fazenda de 400 hectares tem 110 de cacau, que é vendido para o mercado de commodity e também no mercado de cacau especial, para produtores de chocolate bean to bar (da amêndoa à barra). É da produção da fazenda que vem o cacau para os chocolates da Baianí, que têm duas medalhas de bronze e uma de prata na premiação da britânica Academy of Chocolate.
Juliana é a chocolate maker da Baianí e, ao lado do marido, é fundadora da Associação Bean to Bar Brasil, que reúne chocolateiros cuja produção vai da amêndoa até a barra de chocolate. Ela também é ativa em um grupo de WhatsApp que reúne as mulheres produtoras de chocolate no Brasil.
– Nos inspiramos no Women in Chocolate, um movimento que começou na Inglaterra. Há grupos de mulheres do chocolate em vários eventos pelo mundo. Aqui, não somos um grupo institucionalizado. Estamos no WhatsApp trocando ideias e compartilhando informação e, imagina, já somos quase 90 mulheres no grupo! Já até fizemos compra coletiva. É uma proximidade que contagia e articula todos os produtores – explica.
Marcela Monteiro de Carvalho também começou pelo chocolate. Formada em Administração, foi durante um período de férias no Canadá que ela decidiu estudar chocolate. Ficou um ano. Quando voltou, entrou para o Exército, onde foi tenente por sete anos. Sua marca, a Cacau do Ceú, foi a primeira chocolateria bean to bar de Ilhéus. Bisneta de Misael Tavares, um dos maiores produtores de cacau que a região já conheceu, ela agora ensaia um retorno à fazenda.
– Por enquanto compro cacau de João Tavares, que já ganhou duas vezes o prêmio de melhor cacau no Salão do Chocolate, na França. Mas estou fazendo o caminho contrário, entrando nas fazendas para produzir um cacau de qualidade e lançar um linha tree to bar – ela conta, acrescentando que terá uma produção pequena, entre 50 e 60 hectares. – É o suficiente para produzir cacau de qualidade. Mas só vou lançar a nova linha quando estiver do jeito que eu quero.
Marcela, cujos chocolates já foram premiados pela Associação Bean to Bar Brasil, acredita que faz parte de uma geração decidida a mudar a história do cacau no Sul da Bahia, cujo sucesso foi atropelado pela vassoura-de-bruxa:
– O cacau perdeu muito valor como commodity. Quem tem um pedaço de fazenda quer fazer seu chocolate para agregar valor. E, é claro, quem tem cacau de qualidade faz um chocolate de maior valor. Já fomos muito prósperos, o cacau já correspondeu a 70% do PIB da Bahia, e a reação demorou. Foi preciso uma nova geração com vontade de mudar a realidade que conheceu na infância e adolescência.
Para ela, as mulheres realmente estão fazendo a diferença no mercado do chocolate:
– Somos muitas e acho que estamos dominando o mundo do chocolate. Somos alquimistas na cozinha, mas o interessante é ver as mulheres indo para as fazendas. Isso não acontecia antigamente. Agora, dominamos todo o processo.
É exatamente esse caminho que Luana Lessa, da Chor Chocolate de Origem, tem bsucado traçar. Neta de cacauicultor, ela passou a infância indo às fazendas. Com o desejo de empreender, entendeu logo que seria com o chocolate. Decidiu, então, estudar e aprender todo o processo para tocar o negócio em todas as áreas. Hoje, ela mete a mão na massa para elaborar novos produtos, mas também está mais envolvida com a gestão, os eventos e a expansão da marca nos mercados nacional e internacional.
– A Chor tem seis anos e sou atuante nas rodadas de negócios internacionais há três. É um trabalho de formiguinha. Tenho uma loja em Ilhéus e desejo ter uma fazenda para produzir cacau fino. Hoje, costumo comprar cacau da fazenda Floresta Viva – diz ela, que enxerga machismo no setor, sobretudo nos negócios. – Era uma área muito masculinizada, com coronéis e fazendeiros. Hoje há mulheres na produção do chocolate e comandando negócios, mas o machismo ainda é uma realidade.
Luana já viu compradores se dirigirem a seu assistente, e não a ela, em reuniões de negócio. Já teve que responder que a loja e a marca não são de seu avô, mas frutos de seu trabalho, além de outras perguntas “insistentes e invasivas”. Ela questiona: “Não posso criar a minha marca ou ser chefe de um homem?”
Mas Luana afirma que ter outras mulheres no mesmo ramo, compartilhando experiências, faz diferença:
– Temos um movimento de mulheres brasileiras entrando no mercado de chocolate. É uma coisa nova, que tem me ensinado que não estou sozinha. Há mulheres aparecendo no outro lado também, entre os compradores. Hoje há respeito pelas mulheres no mundo do chocolate, as piadinhas de assédio já não são frequentes. E há muitas mulheres trabalhando, só é preciso jogar a luz nelas – finaliza. Fonte: O Globo