Ainda hoje tem gente que faz samba do mesmo jeito há quase cinco séculos. No Recôncavo Baiano, o Globo Rural foi conhecer cantos de trabalho dos agricultores e das lavadeiras do Abaeté.
Cantar para aliviar a dureza do trabalho é outra tradição que resiste ao tempo. “Enquanto a gente tava cantando tava esquecida do que tava fazendo. O trabalho era duro”, diz Maria Dias.
“Dona Mariinha” é uma ganhadeira, função que surgiu durante o período da escravidão. É que alguns negros recebiam de seus senhores o direito de ficar com parte da renda daquilo que produziam ou vendiam. Eram chamados escravos de ganho. Foi assim que muitos, especialmente as mulheres, conseguiram comprar suas alforrias, de seus filhos e maridos.
Quando a escravidão terminou em 1888, parte deles continuou a ganhar a vida do mesmo jeito. Em Salvador, nasceram as ganhadeiras do Abaté, mulheres que até a década de 1980 lavavam roupa nas águas da lagoa. “Minha mãe lavou muitos anos. Depois eu me casei. Quando meus filhos cresceram, tinha que ajudar a comprar livro, comprar, caderno lápis”, diz Maria.
A tradição de cantar durante trabalho também é mantida pelos agricultores do Recôncavo Baiano. Em Saubara, nos tempos do Brasil colônia, se plantava muita cana de açúcar. Para alimentar os engenhos tocados com mão de obra escrava.
Hoje a maior parte das propriedades é como a de Crispim dos Santos, um sítio bem pequeno, com 10 hectares, onde ele faz de tudo um pouco. “Aqui no sítio eu produzo o aipim, produz a mandioca da farinha, tenho um pouco de gado, e o serviço daqui da roça é esse”.
Como a maioria dos pequenos agricultores da região, Crispim também trabalha na pesca. “Tenho rede de todo tipo. Camarão, peixe, várias marcas de peixe eu pesco. Vou para a pescaria quando tenho oportunidade, mas eu vivo mais aqui na roça.”
Crispim toca a roça sozinho. Quando tem uma tarefa mais pesada e precisa de ajuda, ele segue outra tradição do recôncavo e chama vizinhos e amigos pra um “adjitório”. “O adjitório é quando nós temos a área da terra precisando de fazer o serviço, às vezes, as condições do dono não dá, aí convida os amigos e aí vem, como hoje nós estamos aqui, e faz o serviço”. É só pegar na enxada que o povo já começa a cantar.
Esse é um gênero de samba de roda rural. Antigamente, as letras eram improvisadas, um puxava o tema, o outro respondia, numa espécie de desafio. Hoje ainda há improviso, mas a maior parte das canções já está gravada na memória desse povo que canta e trabalha desde criança.
Cantado à capela, no meio da lavoura, não parece samba. Quando Crispim, Pedro, Antônio e suas mulheres e amigos se juntam, a roda de samba esquenta.
Esse é o samba chula, outro gênero de samba de roda, onde enquanto se canta não é permitido dançar. Na hora do instrumental, as mulheres entram na roda. A idade não atrapalha ninguém e quatro gerações se encontram no samba. Crispiniana, de 84 anos, ensinou as filhas, Antonieta e Hermínia, mãe da Elaine. Ela hoje já traz para o samba a pequena Iasmim.
Joselita da Cruz, que todo mundo conhece como Jelita, nasceu e cresceu na roça. Ela herdou da mãe mais um talento especial: tocar prato. Antes do prato, a idosa tocava outro instrumento, ainda mais original. “Na enxada. Quando estava pequenininha, tirava o cabo, segurava e aqui com a enxada tocava o samba”.
Para que essa tradição não se perca, foi criado o Centro de Referência do Samba de Roda da Bahia, que fica no município de Santo Amaro.
Nas últimas décadas do século XX, o samba de roda ficou meio esquecido, perdido pelo interior da Bahia, mas em 2005 ele foi reconhecido como patrimônio cultural da humanidade. O título foi concedido pela Unesco e de lá para cá, muita coisa mudou. “Nós começamos o trabalho em 2005, com 14 a 17 grupos, e hoje nós temos registrados aqui 108 grupos de samba de roda. No recôncavo todo se falava no samba de roda, mas os mestres do samba de roda não se conheciam. Então trazer essas pessoas para se conhecerem já deu um novo ganho para que o samba voltasse a cena nessas comunidades”, explica Rosildo do Rosário, historiador.
O estado de São Paulo tem outro gênero de samba rural, o samba de bumbo. Um gênero que nasceu no século XIX, na região de Campinas. Ele foi criado por escravos já nascidos no Brasil que foram trabalhar nas fazendas de café.
“A proibição da importação de escravos é de 1850 e a partir de 1860, 1870, os fazendeiros de Campinas começam a importar os escravos crioulos do Nordeste. Então se junta a tradição do jongo, que já existia em São Paulo, uma tradição de samba do nordeste, e outras danças como, aqui em São Paulo as danças caipiras, como o catira, o cateretê”, explica Olga Von Simson, socióloga.
No samba de bumbo não tem instrumento de corda, só percussão. Como diz o nome, o bumbo é o personagem principal do batuque. “Ele surge entre os escravos na senzala, no terreiro de café e eles não tinham a possibilidade de ter instrumentos de corda e só faziam seus próprios instrumentos de percussão”.
A socióloga explica que, originalmente, na África o samba também era uma dança em homenagem à deusa da fertilidade. Aqui teve que se adaptar ao jeito conservador da sociedade paulista. “Os fazendeiros e os vigários achavam que era uma dança muito sensual, muito carregada de sensualidade e proibiram. Então, eles substituíram essa homenagem à deusa da fertilidade, colocando o bumbo à frente do corpo do tocador, e aí ele pode simbolizar o falo, e as mulheres dançam em grupo e vão, na verdade, indo e vindo, homenageando esse instrumento e, muitas vezes, jogam suas saias rodadas por sobre o bumbo”.
O samba de bumbo pode até ser mais comportado, mas é muito bonito e animado. “Minha avó pegava uma garrafinha, punha na cabeça, e sambava. Pretinha, magrinha e sambando naquele terreirão, com aquela garrafinha na cabeça, sem derrubar. Era uma coisa que preenchia. Preencheu parte da minha infância”, conta Ana Maria Miranda.
Samba de bumbo, chula, candomblé. Todos esses gêneros afro-brasileiros foram parar no Rio de Janeiro e nas escolas de samba. Fonte: Globo Rural