Desafios para a produção de leite no Nordeste

 

A produção da pecuária de leite brasileira se confunde com a citação de Alcy Cheuiche sobre a visita de Auguste Saint-Hilaire a uma fazenda de criação de bovinos no Rio Grande do Sul em 13 de fevereiro de 1821. "Entre os animais da estância, conta-se mais ou menos metade de machos e outra metade de fêmeas. Aqui, pode-se marcar anualmente um quarto do rebanho. Quando um criador possui quatro mil bovinos pode marcar anualmente mil, dos quais é preciso eliminar 100 cabeças para os impostos. Restar-lhe-ão novecentas. Dos quatrocentos e cinquenta machos se deduzem cinquenta que morrem por moléstia ou por castração. Então o criador poderá vender 400 bois por ano, ou seja, um décimo do seu rebanho". 

 

No caso da produção de leite no Nordeste essa situação de baixa produtividade, fazendo-se exceção à produções pontuais, tende a se perpetuar por anos a fio. Parte de tal situação pode ser debitada ao entendimento técnico que parece teimar em estar de acordo com os relatos de Saint-Hilaire e fundamentados em conceitos que permanecem até hoje. Falta ao técnico uma visão holística do setor produtivo, a capacidade de separar a importância de sua área de trabalho do interesse de fato do sistema de produção de leite. 

 

É comum se dizer que o pastejo é o sistema mais barato de alimentação. Esta assertiva precisa vir acompanhada de muitas informações, dentre as quais se destacam: a produção não pode ser adequada com o animal submetido à temperaturas com picos que muitas vezes ultrapassam os 45°C; a capacidade de suporte da pastagem brasileira está abaixo de 0,8 unidade animal/hectare, contra 5-6 unidades animais por hectare de alimento conservado; o processo de recuperação de pastagem por parte dos produtores costuma ser muito inconsistente; o percurso em declividade de cinco quilômetros leva à vaca a deixar de produzir 1,1 litro de leite; uma boa pastagem atende às exigências nutricionais de uma vaca produzindo até dez litros de leite; em geral, não passa de quatro meses o período de chuvas intensas no Nordeste, época de pastagem de melhor qualidade e com maior capacidade de suporte. 

 

Seria realmente muito bom que as vacas, sob pastejo, mantivessem no ano inteiro padrões competitivos de produtividade. As limitações apresentadas pela qualidade e quantidade de massa dos pastos e as temperaturas elevadas provocadas pela insolação são barreiras naturais a serem vencidas. Isso só poderá acontecer se os atores presentes estiverem convencidos de que a mudança das tecnologias aplicadas, por procedimentos igualmente conhecidos, porém, mais próprios e adequados, é uma exigência para o desenvolvimento de um sistema mais racional de produção. 

 

Há aqueles técnicos que propalam a mudança para raças mais resistentes. Igualmente com certo grau de entendimento, falta esta sugestão ser também discutida a partir de informações claras de alguns fatores etológicos ou de comportamentos naturais da raça na região, níveis produtivos e pelo menos uma análise custo/benefício favorável ao produtor. A escolha de animais ou de raças deve privilegiar a competitividade. Com a sua visão aguçada pelos movimentos da cadeia o produtor está sempre buscando raças mais produtivas, faltando-lhe, principalmente, a aplicação de manejo adequado aos seus rebanhos. 

 

Também existem especialistas que ao se referirem à produção de leite no Nordeste levantam a tese de região imprópria para a atividade. Esta é uma visão enviesada e muito parecida com aquela orientação antiga sobre algumas fruteiras subtropicais e que hoje são exemplos de produtividade no negócio rural da região. Considerar o Nordeste impróprio para a produção de leite revela uma questão também antiga de mesclar a região com processos que têm a cultura da pobreza e a cultura do atraso embutidas nos seus indicadores de qualidade e a serem incorporadas em qualquer programa de desenvolvimento. 

 

O Nordeste apresenta características próprias que oferecem potencialidades à produção de leite. A maioria dos estados tem pequena dimensão geográfica, grandes núcleos populacionais com densidade demográfica elevada e carência alimentar pelos produtos de origem animal. Além disso, em parte da região, há intensa competição provocada por setores do turismo e lazer, setor imobiliário e pela produção de culturas agrícolas tecnificadas, além da preservação ambiental. 

 

Todos esses fatores favorecem ao maior uso de tecnologia e utilização de menores áreas por parte do sistema de produção de leite. No entanto, a falta de maior aporte tecnológico pode estar levando o setor para utilização de áreas maiores e mais distantes, pulverização de unidades produtoras e afastando-as dos principais centros consumidores. 

 

Com menos de 1/3 da população e produzindo pouco mais 10% do leite nacional, o Nordeste é uma região notoriamente importadora. Há enorme espaço para o aumento de produção e melhoria de produtividade, mas não pode estar submetido a conceitos antigos, pré-tecnológicos e pré-concebidos. 

 

Não pode invariavelmente estar ocupando todo o espaço de solos pobres, rasos e periféricos às melhores áreas, sempre destinadas à produção agrícola. Não há como conviver com esta situação, além de pequena escala de produção, logística precária, uso intensivo de mão de obra, manejo geral inadequado, custos elevados pela baixa produtividade, baixo padrão de qualidade e inconsistência de outros elos da cadeia. 

 

O foco da produção de leite é o mesmo em qualquer parte: o volume, incluindo-se, neste caso, a porcentagem de sólidos de interesse industrial e a qualidade composicional e higiênica. A importância pelo menos de um custo/benefício favorável ao sistema produtivo de leite é condição imperiosa para sua sobrevivência, exigindo que os parâmetros ligados à produção sejam eficientes e integrados. Afinal, competitividade e sustentabilidade são os fatores de ordem para a sobrevivência de qualquer sistema agropecuário. 

 

Na estruturação do sistema de produção do Nordeste deverá existir uma consciência formada e extremamente alerta para as condições a que são submetidos os animais. Todas as suas liberdades essenciais devem ser buscadas e interpretadas como um fundamento ao equilíbrio e à eficiência: sanitárias, psicológicas, nutricionais, comportamentais e ambientais. Essa é uma condição que vem sendo paulatinamente requerida pelo mercado consumidor. 

 

Os parâmetros fisiológicos, produtivos e sanitários, entre outros, são monitorados no contexto de respeito à dignidade do ser vivo. No caso do Nordeste, alguns desses princípios, notadamente àqueles mais reconhecidos pelo sistema produtivo, vêm recebendo maior atenção. No entanto, não há como se esperar uma produção adequada sem que o animal leiteiro exerça plenamente o seu comportamento natural e sob um ambiente adequado. Esta, juntamente com inovações tecnológicas, é a premissa sem a qual o Nordeste jamais poderá alcançar padrões profissionalizantes e compatíveis com algumas culturas agrícolas tecnificadas. 

 

Inúmeros estudos que estão sendo realizados no mundo têm apontado cada vez mais para as consequências causadas pelo estresse calórico e da importância de se encontrar um ambiente mais adequado ao animal. Não obstante a resistência obstinada de setores e técnicos dos sistemas de produção do Nordeste, o sistema intensificado, principalmente, o confinado, é o sistema mais próprio e adequado para enfrentar o problema e o que melhor promove as condições de bem estar ao animal. 

 

Muitas vantagens podem ser atribuídas ao confinamento, relacionando-as ainda ao conforto animal. É neste ponto onde a criatividade técnica deve ser exercida com toda a confiança e força. Focado nas regras básicas para o conforto animal e com a eliminação ou minimização do estresse térmico a operacionalização do sistema produtivo, sob parâmetros técnicos inovadores e de reconhecida viabilidade, os impactos no setor leiteiro serão sentidos. É inevitável a substituição da chamada "cultura leiteira", representada por um conjunto operacional defasado e inadequado por práticas que promovam realmente a sustentabilidade do setor. 

 

A redução do número de bovinos no mundo e a crescente demanda por proteína animal, aparentemente em situações conflitantes, são reflexos de uma população cada vez mais numerosa e preocupada com o destino do planeta. Os cenários apontam para maior exigência no consumo de proteína animal, quanto à questão do bem estar animal e quanto esse consumo representa na degradação ambiental, priorizando-se recursos renováveis e de baixo impacto. A aplicação de boas práticas deverá ser acentuada em toda a cadeia potencializando os novos conceitos de ciclo de vida Em algumas partes do mundo, principalmente na Europa, estão surgindo iniciativas visando desacelerar o consumo de alimentos de origem animal tendo em vista o impacto que causa ao meio ambiente. 

 

A produção bovina tem uma emissão de gases estufa 150 vezes superior aos produtos da soja, por exemplo. Considerando-se as projeções de que a demanda por lácteos deverá aumentar em 65% até 2050 quando a população chegará a nove bilhões de habitantes a preocupação pela preservação ambiental é fato totalmente justificável. Por outro lado, mais de 70% do leite produzido e de aumento do consumo deverão ocorrer em países das regiões tropical e subtropical justamente onde o estresse calórico proporcionado pelo aumento de temperatura pode ser considerado o principal fator limitante para o aumento de produtividade. 

 

As sugestões e exigências apresentadas para a produção leiteira em geral a partir de menor número de animais e ocupando áreas cada vez menores, no caso do Nordeste, têm outras motivações adicionais para serem planejadas, estudadas e implantadas aos sistemas de leite. O processo de desertificação é uma realidade cada vez mais ampla e consistente favorecido pelo desmatamento, exploração intensiva dos solos pela agropecuária, além dos períodos intensos de seca que ocorrem continuamente. 

 

O solo frágil exige a preservação da vegetação, no caso do Nordeste, principalmente o solo de caatinga, e técnicas de manejo, inclusive para agropecuária, O uso inadequado dos recursos naturais continua sendo praticado de forma indiscriminada aumentando ainda mais os impactos ao meio ambiente com danos à fertilidade, produtividade e aspectos físicos do solo, à flora e fauna regionais, e consequentes problemas socioeconômicos pela diminuição da qualidade e quantidade dos recursos hídricos, quebra da produção agropecuária, entre outros. 

 

Os efeitos dessa situação estão sendo cada vez mais evidentes. Alagoas tem 62% dos seus municípios afetados pelo fenômeno. Quarenta por cento do território do Rio Grande do Norte é afetado pela desertificação devido à agropecuária tradicional, extrativismo vegetal e pelo uso de tecnologias modernas, mas inadequadas, nos perímetros irrigados. Não existe dúvida de que o processo de degradação ambiental também é grave e continua aumentando. 

 

No esforço para minimizar o problema, vários processos podem ser considerados: uso racional dos recursos naturais, combate à erosão, assistência técnica e educação ambiental, mudança na política de distribuição de terra, como exemplo, aumentando-se o módulo rural etc. No caso da pecuária leiteira, o caminho mais correto será a produção de leite em bases tecnológicas que privilegie a produtividade com liberação de extensas áreas para a preservação. Os sistemas intensivos de animais confinados se encaixam perfeitamente para a atividade leiteira no Nordeste. 

 

O elevado número de produtores com baixa produção é outra característica da região. A agricultura familiar tem um conceito amplo porque reúne diferentes estratos produtivos. No caso do Nordeste tem uma característica própria de subsistência, utilizando poucos recursos tecnológicos, tendo por finalidade a produção de culturas agrícolas e leite que garantam a sobrevivência da família e venda do excedente produzido. O modelo de estrutura da agricultura de subsistência indica de uma forma geral a necessidade premente da ação do governo em todos os requerimentos imprescindíveis à estruturação da família, daí a importância da aplicação de políticas públicas no sentido de fixá-la no ambiente rural com um mínimo de conforto e atendimento das carências individuais. 

 

Sendo um produtor sem perspectiva de grande escala e de um nível tecnológico que promova a produtividade, as políticas públicas aplicadas à produção familiar são também necessárias, urgentes e devem ser utilizadas pelo menos em médio prazo para a melhoria da qualidade do leite e da produção, racionalização do uso da propriedade e organização desse segmento. Somente desta forma a agricultura familiar poderá estar inserida ao sistema produtivo, em segmentos diversos, tanto por meio do sistema convencional de produção, quanto pelo sistema alternativo de produção, principalmente na fabricação de derivados lácteos diferenciados que não comportam uma escala industrial, mas são próprios da região. 

 

O processo de mudança do sistema de produção de leite no Nordeste deverá ser lento e difícil. O sistema de governança de um programa dessa natureza, além de altamente qualificado, deve estar focado na mudança de paradigma e atento à resistência de muitos séculos. Não se deve ter receio de usar as tecnologias compatíveis com as necessidades da raça, sendo importante se buscar a interdisciplinaridade que evidencie também competências pouco lembradas e ferramentas próprias a exemplo de construções rurais, ilhas de vegetação arbórea, climatologia, comportamento e bem-estar animal, boas práticas da produção, outros desafios proporcionados por áreas da bioeconomia e de processos que promovam o arranjo e a organização da categoria produtora. 

 

O impacto financeiro do calor ambiental na cadeia de lácteos excede ao impacto de outros fatores do sistema produtivo considerados muito limitantes. No Nordeste, certamente, as elevadas temperaturas têm uma característica de barreira à produtividade. As prioridades biológicas manifestadas no crescimento, na produção, reprodução, manutenção do teor de líquidos e temperatura normal do organismo animal, embora sempre ressaltadas para a vaca, devem ser atendidas ao longo de todo o ciclo de vida de outras categorias de animais porque terão influência direta no volume do leite produzido e na quantidade e qualidade dos seus sólidos essenciais à produção de lácteos. 

 

A adoção de tecnologias tem sido o caminho utilizado para o desenvolvimento de várias culturas agrícolas no Nordeste e não será diferente para a produção de leite. A maioria das indústrias vem se modernizando e tem planta industrial com capacidade para receber a mesma quantidade de leite diariamente. Só o aporte tecnológico pode dar ao sistema produtivo a capacidade de ofertar a mesma quantidade de leite durante todo o ano e assim contribuir para dar maior competitividade ao setor. 

 

Mudanças profundas terão que ocorrer no entendimento do sistema produtivo quanto à assimilação de inovações tecnológicas. A disponibilidade de mão de obra, pouco qualificada e cada vez mais escassa, padrões salariais e regimes empregatícios precários são outras questões importantes e de difícil resolução. Grandes empreendimentos profissionalizados poderão dispor de consultorias e de tecnologias modernas e eficientes que liberam a elevada quantidade de empregados. Mas a imensa maioria do sistema produtivo deverá ser apoiada para que os procedimentos tecnológicos e inovadores possam ser transformados em agentes de produtividade e competitividade. 

 

Lideranças políticas e produtoras deverão se empenhar no sentido de que os serviços estaduais de extensão rural sejam seriamente reativados, requalificadas e antenados com a produção contemporânea. Os estudos prospectivos de tecnologias e de avaliação de impacto socioeconômico e ambiental e as pesquisas aplicadas deverão permear todo o processo de modernização do setor. 

 

Outros órgãos públicos e privados devem ser acionados nos processos de treinamento e difusão. Em última análise, pode-se reafirmar a disponibilidade de tecnologias para se modernizar e tecnificar o modelo de produção de leite no Nordeste. Os desafios estão na vontade política e cultural e na forma em que essas tecnologias devem chegar aos diversos estratos de produtores.  Fonte: Embrapa

 

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