Em 2010, quando levou suas amêndoas de cacau para competir no Salão do Chocolate, em Paris, o fazendeiro baiano João Tavares foi obrigado a engolir a prepotência dos adversários. “Os brasileiros eram considerados produtores de cacau ordinário”, diz. Mas foi ele quem riu por último – faturou um dos prêmios Cocoa of Excellence.
“No ano seguinte, voltei lá e ganhei de novo, só para não deixar dúvida.” O episódio, que completa quatro anos neste mês, pode ser considerado um divisor de águas para o cacau brasileiro, por ter coroado o intenso trabalho de recuperação das fazendas que haviam sido devastadas pela praga vassoura-de-bruxa em 1989. Em uma década, o país – então o segundo maior produtor mundial – viu a produção de 400.000 toneladas anuais minguar a parcas 90.000. De lá para cá, o combate ao perigoso fungo cor-de-rosa Moniliophtora perniciosa não tem sido a única preocupação dos fazendeiros. Agora, eles querem ganhar espaço no mercado do cacau gourmet de altíssima qualidade, no qual o preço da tonelada pode passar dos 5.500 dólares – bem mais do que os 3.000 dólares pagos pelas amêndoas comuns. Para chegar lá, segundo João Tavares, o caminho passa por investimentos no campo, mas não só: “Produtores e indústria sempre estiveram separados. A união das duas pontas é a grande revolução”.
Tecnologia na terra
Aos olhos do leigo, a Fazenda Leolinda, entre os municípios baianos de Ilhéus e Uruçuca, pode parecer parada no tempo. Ainda estão ali a casa principal de pau a pique e o barracão, onde as amêndoas em fermentação deixam a atmosfera impregnada por um cheirinho azedo. Mas a propriedade de 700 hectares, que pertence à família de João Tavares desde 1976, é hoje um modelo de boas práticas.
Os cochos de fermentação são redondos, invenção do próprio João. Com 50 centímetros de altura e 1,30 metro de diâmetro, permitem que o processo seja mais uniforme. “Nos cochos quadrados convencionais, a temperatura nunca é a mesma no centro e nos cantos. Quando notei isso, inventei os modelos cilíndricos e fui chamado de louco.” De lá, as amêndoas já livres da polpa secam por até 12 dias em barcaças protegidas das intempéries – funcionários as reviram a cada meia hora para garantir que todas sequem por igual. Tanto cuidado, diz João, faz a diferença no mercado internacional. “Cerca de 70% de minha produção é classificada como de altíssima qualidade. E 40% dessas amêndoas são exportadas para França, Bélgica e México.”
João Tavares não é o único a alcançar tal patamar. Embora o chamado cacau fino ainda represente 1% da produção brasileira – de 100.000 toneladas anuais –, diversos fazendeiros entre seus vizinhos vêm obtendo excelentes resultados. Desde agosto eles têm à disposição ainda mais recursos para agregar valor às amêndoas. A Cooperativa Agroindustrial de Cacau Fino (Cooperbahia) acaba de inaugurar uma planta-modelo de beneficiamento, onde qualquer produtor, pequeno ou grande, pode moer seu cacau e transformá-lo em liquor.
Antes, o trabalho era feito somente por indústrias moageiras equipadas para processar grandes quantidades, o que inviabilizava o acesso a pequenos produtores e impossibilitava o processamento de microlotes de qualidade excepcional. “Nossa planta tem capacidade para moer até 30 quilos de amêndoas. Sai caro, mas vale a pena quando se trata de uma preciosidade”, afirma o diretor industrial da Cooperbahia, Adelmo Costa Lins. A nova estrutura, que custou 16 milhões de reais, se traduz em mais dinheiro no bolso do produtor – agora, quem planta pode faturar mais negociando o liquor, de maior valor agregado, direto com a indústria de chocolate.
Controle de ponta a ponta
O aumento da qualidade do cacau brasileiro já pode ser percebido pelo consumidor final – nunca houve tantas marcas de chocolate de origem 100% nacional. Entre os 13 expositores do VI Festival Internacional do Chocolate e Cacau da Bahia, realizado em Ilhéus, em julho, destacaram-se empresas que dominam o processo de uma ponta a outra. Na carona do precursor Diego Badaró, fazendeiro que lançou o chocolate Amma em 2010, os novos barões do cacau estão descobrindo que fabricar tabletes para o mercado gourmet é um grande negócio. Leandro Almeida, cuja família planta cacau na Bahia há duas décadas, lançou o próprio chocolate, o Mendoá, em 2013.
Na propriedade de 1.000 hectares, funciona também um centro de pesquisas. “Decidimos produzir chocolate porque os altos investimentos não se pagam só com a venda das amêndoas”, diz. A estratégia funcionou. A linha, composta de seis produtos com alto teor de cacau – começa com 50% na versão ao leite –, tem feito sucesso nos empórios do Sudeste. Chamam atenção as embalagens coloridas com design moderninho, vendidas por 18 reais em média (com 75 g). Leandro, claro, anda rindo à toa. “Nossa fábrica acaba de ser ampliada. Passamos de 50 quilos diários de chocolate para 500 quilos.” Henrique de Almeida é outro fazendeiro que só conseguiu fechar a conta depois que começou a fabricar chocolate – o Sagarana, lançado há quatro anos. Nos 30 pontos de venda distribuídos por Bahia, São Paulo e Brasília, o tablete de 40 gramas custa 16 reais em média. “Vender só a amêndoa não vale a pena financeiramente. Recebo 8.000 dólares pela tonelada, enquanto consigo 20.000 dólares com o chocolate.” Desde julho, parte de sua produção sai da fábrica com a marca Babette, empresa baiana do chef belga Laurent Rezette. As duas variedades de chocolate, com 42,5% e 67% de cacau, serão vendidas em grandes redes nacionais de varejo, como Carrefour e Walmart.
Concorrência internacional
A indústria de grande porte também começa a apostar no chocolate brasileiro. Quarta maior do Brasil em volume de produção, com 6.000 toneladas mensais, a Harald, localizada em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo, lançou-se numa cruzada para mudar sua imagem – fundada em 1982, a empresa cresceu explorando o mercado de produtos baratos e as coberturas, como são chamados os chocolates preacabados dirigidos à indústria alimentícia. Em 2010, a marca investiu 4,5 milhões de reais para lançar uma linha sofisticada de chocolates com alta concentração de cacau, a Unique, em cujas embalagens negras o produtor aparece identificado – uma delas, com teor 63%, exibe o nome de João Tavares. “Por enquanto, o Unique representa 1% do meu volume de produção porque falta matéria-prima”, afirma Ernesto Ary Neugebauer, presidente da Harald. Na fábrica de 15.000 metros quadrados, máquinas importadas da Alemanha usam tecnologia de ponta para processar as amêndoas e transformá-las em chocolate. A concha, espécie de batedeira gigante que trabalha com calor, atinge até 95 graus, enquanto as versões mais antigas não passavam de 60 graus – o resultado é um produto livre de acidez.
Enquanto batalha para abrir espaço no varejo para o Unique, a Harald mira também nos chefs e chocolatiers: combina uma política agressiva de preços no atacado, que já se equipara à do belga Callebaut, a um bem costurado trabalho de relações públicas, que inclui a contratação do pâtissier espanhol Javier Guillen. Ex-chef confeiteiro da Valrhona para Espanha e Itália, ele viaja pelo Brasil demonstrando suas criações à base de chocolate Unique, como as três receitas exibidas nesta reportagem. Proprietária da Chocolat des Arts, em São Paulo, Cíntia Sanches já está convencida: substituiu 100% da matéria-prima importada pelo chocolate brasileiro de origem. “Participei dos primeiros testes da Harald, e o resultado foi me deixando empolgadíssima. No começo deste ano, o 53% já estava superior ao belga e decidi abraçar a causa do produto brasileiro”, afirma a chocolatière, que acaba de lançar uma linha de bombons com ingredientes regionais, como óleo de pequi, imburana (canela do Pantanal) e a pimenta amazônica mático – cada unidade custa 4,80 reais. Outro entusiasta dos chocolates nacionais é o baiano Arnor Porto, chef pâtissier do hotel Emiliano. Nascido em Itabuna, cidade vizinha a Ilhéus, ele conta que já trabalhou na colheita do cacau durante a adolescência. Mas sua opção pelo Harald, garante, não é sentimental. “Obtive ótimos resultados com o João Tavares nas receitas dos muffins e dos quindins de chocolate”, afirma. Confiante, Neugebauer promete roubar muito mais mercado do famoso concorrente belga. “Convencemos o cliente sempre que ele abre a embalagem e prova o chocolate.” Fonte: Prazeres da Mesa