Cacau capixaba: 100 anos de proteção florestal ameaçada pela ausência do Estado

No ano do centenário da produção nas matas de aluvião do Rio Doce, a cacauicultura capixaba clama por políticas públicas que realmente ofereçam uma contrapartida do Estado aos guardiães da Mata Atlântica.
O centenário da produção cacaueira em Linhares é também o centenário de uma cultura agrícola que salvou da devastação quase 20 mil hectares de florestas – com elevada biodiversidade, constatada em estudos científicos – em Áreas de Preservação Permanente (APPs) nas margens do Rio Doce, um dos motivos para que o município seja uma exceção, no litoral norte, do predomínio do deserto verde de eucaliptais da Aracruz Celulose (Fibria) e Suzano na paisagem.
Os produtores linharenses, no entanto, não ficaram totalmente imunes à agressividade das papeleiras nem das multinacionais do próprio setor cacaueiro. O primeiro grande golpe foi a construção dos diques que desviaram águas da bacia do Rio Doce para a fábrica da Aracruz Celulose, ainda na década de 1970, rebaixando o lençol freático em boa parte do território cacaueiro.
Em seguida, vieram as baixas do preço no mercado internacional. A amêndoa de cacau (Theobroma cacao, ou “alimento dos deuses”, em grego), que já foi peça-chave de rituais sagrados dos milenares povos astecas da América Central, hoje é uma commodity, cujo preço é definido em bolsas de valores. As quedas seguidas dos preços descapitalizaram os produtores, que ficaram quase incapacitados de investir em novas tecnologias e na renovação dos plantios.
Por fim, a chegada da vassoura-de-bruxa, fungo que é a principal praga do cacau, há cerca de vinte anos. Sem recursos para tratar adequadamente as plantas, o cacauicultor viu a produção cair ano após ano.
Hoje os guardiães das APPs da Mata Atlântica local – cerca de 700, em pequenas e médias propriedades, que contribuem com mais de 80% da produção capixaba de seis mil toneladas/ano, a quarta maior do país – estão descapitalizados, com suas matas de cabruca (nome dado aos plantios tradicionais de cacau sob a sombra da floresta) envelhecidas e escravos da máfia do preço internacional da amêndoa mais cobiçada do planeta.
“Ele é um protetor da floresta, mas não recebe o benefício por isso”, observa o pesquisador da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) em Linhares, Carlos Alberto Spaggiari. Os bancos, por exemplo, tratam o cacau de cabruca como monocultura, e não como Sistemas Agroflorestais (SAFs) que são.
E assim, desassistido e sufocado pelo mercado, o pequeno produtor acaba não renovando a floresta: quando uma árvore morre, ele não planta outra no lugar. E, impedido legalmente de cortar qualquer espécime florestal, ele muitas vezes não deixa crescerem as jovens árvores que nascem espontaneamente no chão da floresta, arrancando-as para evitar um sombreamento excessivo sobre a lavoura – o ideal para o cacau é de 30% a 50% de sombra, mais do que isso é prejudicial à produção.
Sem falar nos desmatamentos ilegais que acabam acontecendo, para outros plantios ou mesmo venda de madeira, como alternativa de renda ao endividado cacauicultor. “Infelizmente, a gente sabe que isso acontece, e os órgãos ambientais vez ou outra flagram esses desmates ilegais”, conta o pesquisador da Ceplac.

Interesse das multinacionais
O II Simpósio da Cacauicultura Capixaba, que aconteceu essa semana em Linhares, foi uma das mostras da falta histórica de compromisso estatal com a real sustentabilidade do setor.
Promovido pela Federação da Agricultura do Espírito Santo (Faes), com colaboração de órgãos federais e estaduais e apoio de grandes empresas do setor, o Simpósio não teve nenhum espaço, em sua programação, para discussões sobre a independência econômica do pequeno produtor ou alternativas de uso da mata de “cabruca” em complementação à produção cacaueira, dois dos temas fundamentais em que o Estado deveria focar sua atuação.
Ao contrário, o Simpósio tem interferência clara das multinacionais, que têm interesse em manter as baixas condições sociais e trabalhistas a que são subordinados a maioria dos trabalhadores, e não têm interesse algum em potencializar o caráter ambientalmente responsável dos plantios tradicionais de cacau.
“É preciso viabilizar um preço melhor para esse cacau de cabruca”, afirma Carlos Spaggiari. E, para essa viabilização, o papel do Estado é fundamental, diz o pesquisador, destacando a necessidade de políticas públicas que façam a ponte entre o produtor da cabruca, guardião da floresta, e os nichos de mercado que pagam preços melhores a amêndoas especiais.

Cooperativas e pequenas agroindústrias
O apoio à criação de cooperativas e pequenas agroindústrias é um caminho, seguindo exemplos já bem-sucedidos no sul da Bahia, em Iconha, no sul do Estado, e mesmo iniciativas recentes em Linhares. Inovação que abriria portas, por exemplo, para a entrada do cacau beneficiado na merenda escolar e no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Para entender a emergência do assunto, uma contextualização temporal, geográfica e mercadológica se faz necessária. Existem atualmente seis a sete milhões de produtores no mundo, boa parte deles em áreas muitos pobres do planeta, que vendem, basicamente, para apenas oito a dez grandes compradores mundiais. Trabalho escravo e infantil, agrotóxicos e desmatamentos são práticas que costumam tornar o preço mais barato e para as quais os tais grandes compradores fazem cômoda vista grossa.
O mesmo valor pago a um cacau produzido em péssimas condições, do ponto de vista social, ambiental e trabalhista, é comprado pelo mesmo preço que um cacau produzido em cabruca – sombreado pela floresta – e com mão de obra dignamente contratada. Para conseguir um preço melhor, é o próprio produtor que precisa se organizar para conseguir acessar os tais nichos de mercado que valorizam a qualidade.

Gigante adormecido
“É um gigante adormecido”, metaforiza Carlos Alberto, com relação ao selo origem IG [Indicação Geográfica] conquistado pelo cacau do Rio Doce, o primeiro do país a obtê-lo. Passados três anos da chegada do selo, no entanto, o benefício financeiro ainda não chegou aos produtores. E, com o assédio das multinacionais e a negligência do Estado, aumenta continuamente a pressão sobre a floresta e sobre as relações trabalhistas tradicionais da cacauicultura na região.
A técnica de produção “a pleno sol” ou “em campo aberto” é a falácia da vez. As multinacionais têm feito enorme esforço para convencer os produtores de que o cacau, uma planta sensível, que precisa da sombra da floresta tropical ou equatorial – na Mata Atlântica, na Amazônia ou na África – para viver, pode produzir melhor sem essa proteção florestal.
De fato, explica Carlos Spaggiari, a produção é maior sob o sol direto, mas isso não significa produção melhor. Nem do ponto de vista ambiental, nem social, nem econômico. Apesar da produção “muito maior que na cabruca”, os gastos são ainda maiores – com água, principalmente, e também com insumos como agrotóxicos, para compensar o estresse permanente a que fica submetida a planta, atraindo pragas –, inviabilizando economicamente. “É um tiro no pé”, afirma, citando exemplo de um produtor no Chapadão do Quinze, em Linhares, que experimentou a nova técnica, mas já está revegetando seu cultivo.
Ambientalmente é um desastre, pois quebra a lógica da manutenção da floresta para a produção. Socialmente, também não é nada interessante, pois os campos abertos favorecem a mecanização, que elimina grandes contingentes de mão de obra.
Ao contrário do Simpósio da Faes, o tradicional Salão do Chocolate de Paris, que este ano acontece em outubro, é palco já costumeiro para premiação do cacau capixaba de alta qualidade. Êxitos individuais, ainda, de produtores que alcançaram uma visão inovadora do setor e têm buscado as brechas possíveis para investir e revitalizar suas lavouras. Inovações que já passaram da hora de serem reconhecidas e incentivadas também pelo Estado.
Fonte: Século Diário

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