Assentamento no sul da Bahia é tema do documentário Dois Riachões – Cacau e Liberdade
Chocolate não tem data nem hora para ser desejado e consumido. Mas o que está por trás da produção da sua principal matéria-prima, o cacau? Como saber se o chocolate que a gente consome é fruto de um trabalho limpo e justo? Quem produz, de onde ele vem e como é o trabalho de quem vive do cacau?
O fotógrafo Fellipe Abreu e a jornalista Patrícia Moll retrataram a história de famílias do assentamento Dois Riachões que conseguiram sair da condição análoga à escravidão vivenciada por gerações anteriores por meio da produção agroecológica de cacau no sul da Bahia.
“Meu avô nunca comeu chocolate, nunca quem comia era o coronel. Ele morreu sem saber o que era chocolate”, conta o agricultor familiar Edivaldo dos Santos no documentário Dois Riachões, Cacau e Liberdade.
“Eu quebrei muito cacau e eu não tinha direito de chupar um caroço de cacau, porque o cabo de turma estava do nosso lado, vigiando tudo”, afirma a assentada Luiza Batista.
Edivaldo, Luiza e outros agricultores que romperam com o ciclo tradicional de produção pelos herdeiros dos coronéis das fazendas da Bahia no assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga, vivem 150 pessoas e a produção tem sido referência para outras comunidades que lutam pela reforma agrária no Brasil.
Os agricultores ligados à Coordenação Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados (Ceta) ocuparam o local em 2007, mas só em 2018 houve a regularização da terra. No local além do cacau, eles plantam outras culturas, como frutas, hortaliças e grãos.
Teresa Santiago, é agricultora do assentamento fala que a agroecologia é a base de todo processo, e a comercialização é um dos tripés dessa luta. Eles conseguem escoar a produção nas feiras, com vendas diretas com o consumidor e por meio de programas federais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Para a agricultora Teresa Santiago a liberdade foi construída a partir da luta pela terra, quando houve a transição de meeiros para donos do lote e da produção.
“Você deixa de ser oprimido, deixa de ter ali alguém que vai mandar dizer o que você vai fazer para outra maneira de viver e construir coletivamente a luta pela terra. No documentário, quando a gente fala da soberania, é a soberania em todas as suas vertentes seja social, alimentar, na questão ambiental, produtiva e econômica.”, diz a agricultora.
Durante as gravações do documentário, Abreu explica que eles acompanharam as mudanças na comercialização. Ele conta que as amêndoas de cacau que antes eram vistas como simples commodities e baratas, passaram ser um produto com valor agregado.
“Então eles começaram a estudar fermentação e como agregar valor àquela amêndoa que produziam e começaram a vendê-la para marcas finas por um valor muito mais alto do que o cacau de baixa qualidade. Não satisfeitos, num segundo momento quando a gente estava lá filmando, eles já estavam construindo a própria fábrica de chocolate e dois anos depois inauguraram uma fábrica e lançaram o chocolate Dois Riachões”, conta um dos diretores.
Patrícia conta que a ideia do documentário surgiu por não ser uma história conhecida e pelo chocolate ser algo universal que interessa diversas culturas. Ela destaca a organização, e trabalho coletivo dessas famílias.
“Eu me impressionei como eles trabalham em mutirão e tem a noção bem definida de trabalho coletivo. Eles fazem tudo juntos, passam o dia na roça do seu Fulano, depois vão para a roça do seu Beltrano, sempre se divertindo e cantando enquanto fazem a quebragem. Também é lindo ver eles terem conseguido conquistar essa soberania alimentar e hoje cozinharem e produzirem os próprios alimentos e finalmente poderem comer o próprio chocolate”.
Para Abreu, com o atual contexto de ataque aos direitos socioambientais no Brasil é ainda mais importante trazer o debate temas como agroecologia e agricultura familiar que se recebesse mais fomento do poder público poderia crescer ainda mais no país.
O cacau já faz parte da história do Brasil e no sul da Bahia é um dos principais produtos agrícolas da região. A produção de cacau cabruca de Dois Riachões, é um exemplo de como ter um sistema aliado à conservação ambiental. A produção agroecológica considera não só o alimento livre de veneno, mas a preservação de espécies florestais nativas, manutenção dos recursos hídricos e a fauna local.
“O sistema cabruca de produção de cacau não derruba a mata nativa, ele coexiste junto com ela. Se você olhar para uma lavoura de cacau cabruca, você vê a Mata Atlântica por cima e o cacau por baixo. Inclusive, se você não prestar muita atenção, às vezes você nem vê o cacau, porque ele fica completamente rodeado pela mata. Além de preservar a mata, o próprio cacau se beneficia da sombra das árvores e produz melhor e por mais tempo”.
O documentário foi produzido de forma independente e foi o primeiro curta de Patricia e Fellipe juntos. A ideia é que o documentário que vem sendo exibido em diversos festivais pelo mundo ajude a viabilizar outros projetos semelhantes com olhar voltado para o rural, a agricultura familiar e a cultura alimentar do Brasil.
“Esse foi totalmente independente, então a nossa ideia era usar ele também um pouco como moeda para conseguir contar outras histórias de produção de alimentos pelo Brasil e sempre com um alimento que para mostrar o quão viável também é escolher comprar esses alimentos. Para não precisar escolher um [chocolate] do supermercado, ou seja, para mostrar o que impacta quando você escolhe comprar um alimento da agricultura familiar.”, comenta Patricia.
O documentário recebeu prêmios como melhor curta-metragem no VI Festival de Cine Independiente de Claypole, na Argentina, o Prêmio Consorzio del Formaggio Parmegiano Reggiano”, no Festival Mente Locale e como melhor filme no Festival Santa Cruz de Cinema, no Rio Grande do Sul.
Fonte: https://www.brasildefato.com.br/